terça-feira, 1 de março de 2011

Correndo atrás do leite derramado


Para falar sobre essa notícia, o grande desafio é resistir ao impulso de chamar esse povo todo de louco. Não é nenhuma reserva moral ou inabilidade diagnóstica que justifica essa resistência. Ela é necessária pelo simples fato de ser fácil demais. Não generalizo, mas tenho a inclinação de desconfiar de tudo o que é fácil assim.

Neste caso específico, creio que minha inclinação se justifica. Rotulá-los de loucos (independentemente de o serem ou não) é uma atitude cômoda. Tudo aquilo que sai dos limitados e limitantes padrões sociais vigentes é taxado de loucura/anormalidade. Isso ajuda a nós, os ditos normais, a sentirmo-nos mais seguros. Traçamos uma linha imaginária entre a nossa suposta normalidade e a loucura (sempre dos outros). Assim nos sentimos bem e seguimos enlouquecendo "calmamente, viciosamente sem prazer", como diz o Lobão na música "Essa Noite Não". Além disso, rotular do que quer que seja qualquer uma das múltiplas possibilidades do funcionamento mental humano é simplesmente fechar as portas para uma compreensão mais profunda sobre nós mesmos.

Portanto, é preciso ir mais além. É preciso analisar (mesmo que rápida e superficialmente, como é o caso deste texto) as nuances, sutilezas e singularidades de cada situação. Diante da notícia que temos em pauta, penso que é possível engendrarmos duas perspectivas de análise: (1) o lado das mulheres que, nas palavras da matéria, se submeteram à "ordenha" e (2) o lado dos consumidores do referido produto. Proponho, aqui, pensar um pouquinho nos consumidores do tal sorvete. Teríamos um terceiro lado, a saber, a perspectiva de quem teve a ideia de produzir esse sorvete. Nesse caso, sim, acho que podemos simplificar e asseverar que as motivações financeiras (até mesmo em decorrência da publicidade, positiva ou negativa, em torno da exótica iguaria) explicam de modo relativamente satisfatório tal empreitada.

A psicanalista austríaca Melanie Klein (1882 - 1960), em seus estudos e casos clínicos, postulou que as primeiras experiências humanas de satisfação, frustração, saciação, privação, acolhimento e desamparo são as bases nas quais a personalidade de cada indivíduo se alicerçará. E, na maioria das vezes, essas (e outras) experiências primordiais, antes de serem atribuídas e vivenciadas como se fossem em relação à mãe (ou a quem exerce a função materna), são sentidas na relação com a amamentação e o seio materno. O ser humano nasce, cresce, se reproduz e morre fundamentalmente em busca de uma suposta completude paradisíaca perfeita e perdida. Em outras palavras - pois sempre precisamos de outras palavras -, vivemos movidos pela tentativa incansável de preenchermos uma falta incurável, como bem falou, marcou e contornou o psicanalista francês Jacques Lacan (1901 - 1981).

Teria, portanto, a busca humana (desenfreada e inconsciente) pelo paraíso perdido algo a ver com tal sucesso de vendas? Estariam todos desesperadamente em busca do leite materno primordial, tentando saciar o desamparo irremediável ao qual todo ser humano está sujeito?

Evidentemente, este texto rápido, simples e superficial não pretende responder a essas questões, mas contenta-se perfeitamente em, por hora, realizar a tarefa de levantá-las.

11 comentários:

  1. Paulo,
    compartilho da preocupação de não taxar de loucura aquilo que é "diferente". Afinal, diferenças não são defeitos, embora a sociedade sinalize esta máxima.

    Eu levantaria outro ponto que a psicologia - não exatamente a psicanálise - trata: a formação de Grupos.

    Quantos destes consumidores não estão consumindo o produto vigente para se sentirem pertencentes?

    Lispector disse: "A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver."

    Há pertences e pertences...
    Eu prefiro pertencer de outra forma.

    Parabéns pelo belo texto!

    Abraços,
    Bruna.

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  2. Paulo, que texto bem escrito, que reflexao cuidadosa.

    Pois, bem, a proposta dos produtores, parece-me ótima. De incentivar os adultos dos benefícios do leite materno, e blablablá. Rs...


    Mas, bem...vamos lá, né!!! Tomar leite da mãe do outro, comprar leite da mãe do outro, em forma de sorvete...sei lá. De fato parece-me, mesmo, uma busca por uma satisfação primordial...mas parece-me que há um "q" incestuoso aí. Pois sabe-se lá de quem é o leite.

    E muito bem dito: sempre precisamos de outras palavras. Genial isso.

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  3. Reviveu um ponto importante: a busca de superar as frustrações nessa belíssima metáfora, que, pelo menos eu, sempre pensava naquela vasilha, jarra de leite estatelada no chão. Mas, após seu ótimo texto, agora vejo que o negócio começou muito antes. Conseguiremos, sempre pela loucura, retomar, de alguma forma, o leite derramado? Tentar, talvez, seja a constante!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. O texto está ótimo! Reflexivo, contemporâneo e muito bem escrito.
    Essa busca incessante do ser humano pela realização plena na maioria das vezes vê na "loucura" uma maneira de consegui-la. Mas quero, também, chamar atenção para outro ponto. Não acredito numa "realização plena" quando a busca se dá no externo, ao contrário, o exercício da busca pela felicidade se dá completamente no interior de cada ser. Não vejo futuro em associações com outras pessoas e menos ainda em buscas no passado para solucionar problemas que se passam dentro de cada um de nós. O exercício de fechar os olhos e olhar para dentro é incrivelmente magnífico!

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  6. Pra mim é um tanto "coerente" isso, por louco que pareça. Afinal, os seres humanos são os únicos animais do planeta que não desmamam depois de filhotes e, para saciar sua "necessidade de cálcio" (que pode ser encontrado em outros alimentos até em maior concentração que a do leite), submetem outros animais ao seu dispor.

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  7. Puxa, que legal!

    Nunca pensei que poderia existir um sorvete desses, hahaha!

    Parece que os consumidores estão insaciavelmente em busca de "uma última mamada"...

    Gostoso acompanhar esse caminho reflexivo que você conferiu à manchete!

    ;-)

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  8. Dizem que sou louco por pensar assim...

    Abraços.

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  9. Não existe esse tal de "em busca do tempo perdido". Proust que me perdoe. O inconsciente é sua eterna atualização. O ontem é hoje, sempre.
    Beijos, Paulo!

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  10. Paulo...
    Recebi esta notícia no meu mail, através duma newsletter que recebo, com um vídeo incluído, e tenho que confessar, a primeira coisa que me veio à cabeça foi...Isto é uma demência!

    E acho que nem preciso de lhe dizer, que sou bastante receptiva e aberta á diferença.
    Para mim, aqui não se trata dum comportamento diferente, mas da procura de algo que ainda consiga surpreender e vender, em tempos de crise, não só económica mas também de interesses.
    A sociedade que já esgotou o conceito de vanguarda, busca já não apenas a novidade, mas o insólito, o nunca visto, ainda que seja destituído de sentido.
    Tivemos a Lady Gaga coberta de bifes, agora temos o gelado "humano"..."Baby Gaga"...no extremo...talvez um restaurante para caníbais...(risos)

    Espero que não me leve a mal. Adorei o seu texto, mas este comentário foi um desabafo numa época em que "cegos guiam loucos"...

    Abraço grande e carinhoso

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  11. Paulo,
    Interessante o seu comentário, mesmo porque percebo que o ser humano vive em busca de algo para satisfazer seus desejos e sua vida cada vez mais sem graça. Beijos

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